A Morte Filosófica




Tem gente que diz que o cansaço é vencido com a força de vontade. Digo que o descanso não é cá na terra. Sendo assim, morrer dever ser: por algum motivo estar-se tão cansado que só o sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem morre às vezes precisa muito. Será que morrer é o último prazer terreno? O suicida não deseja a morte. A sobrevida talvez. O cansaso de ser. Apagar a lembrança quase intermitente do que é. Ele morre para pontuar. E colocar um ponto infeliz ao final de sua história (penso eu).


1-Introdução

Podemos definir o conceito “morte” à luz das práticas religiosas, das ciências naturais, das manifestações culturais/antropológicas/artísticas, das linguagens diversas e pela ótica filosófica. Aqui vamos focar nossa atenção ao campo filosófico. As outras possibilidades não serão consideradas.

No caso da Filosofia, há uma aproximação conceitual, no quesito morte, entre as grandes escolas de pensamento e a essência das antigas tradições das sociedades iniciáticas. Isto porque nas fornalhas germinais que lapidaram a busca primordial pela compreensão da existência, o esoterismo caminhava pari passo com o que seria chamado, em um distante futuro, de Filosofia. A sabedoria mais arguta se confundia com a alquimia, com o misticismo e com o tráfego por caminhos sombrios que permeavam os labirintos da alma humana. Estes corredores em penumbra permanecem , em pleno século XXI, ainda na mesma misteriosa obscuridade de outrora.

Nesta peça, proponho a realização de breves reflexões sobre este ponto de clivagem em nossa existência, sobre este momento ímpar que todos nós vivenciaremos de modo inexorável , avassalador e daqui a muito pouco tempo.

2-A Vida Examinada

Antes de adentrarmos ao tema da morte em si, reflitamos brevemente sobre um dos mais inquietantes aspectos ou elementos de nossa efêmera existência consciente. O Homem é um ser especial. É um ente único na natureza. Nenhum integrante dos reinos animal, vegetal ou mineral apresenta uma característica essencial que a nós é exclusiva. Alguns autores chamam esta condição de dádiva. Outros de “carma”, ou de castigo. Sartre disse que somos condenados a esta contingência, ao contrário de todos os outros parceiros de viagem pelo cosmos infinito. Para certos pensadores seria a “fagulha divina” presente em cada alma.

Mas qual seria este componente que faz toda a diferença? A resposta vem da filosofia clássica grega: a espécie humana é a única que possui a capacidade de examinar a nossa própria vida. Cada gesto, cada ato, cada palavra, cada omissão, cada intenção ou pensamento, que assumem uma positividade em todo e qualquer momento, conciente ou não, é passível de sofrer uma análise por um crivo valorativo. Nossa mente abstrai todos os componentes de um movimento que fazemos e isola, em si, apenas o valor ético que o mesmo apresenta – ou que lhe falta. A abstração de todos os intentos e esta depuração moral são indícios.

E qual seria a importância de passar e repassar cada instante da existência por algum tipo de peneira ética ou moral? Sócrates disse que “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Para o ateniense, um ente que não reflete sobre o que faz no mundo não seria um homem completo, na essência do termo. Estaria mais aproximado a um animal qualquer, ou a uma couve-flor. Portanto, torna-se vital que todos (pelo menos aqueles que desejam a plenitude da experiência de ser humano) se autoavaliem segundo a segundo. 

O que eu fiz, por que fiz, o que isso significa para mim e para todos, eu faria de novo o que acabei de fazer? 

Estas são perguntas que devíamos considerar após cada ato de nossa teatral vida em sociedade – claro que se você vivesse em uma ilha deserta esta preocupação seria, do ponto de vista ético, irrelevante.


3-A Morte e os Afetos

Todo ser humano está, inexorável e contingencialmente, submetido aos caprichos e ditames dos chamados afetos . Os afetos da alma humana, também conhecidos como instintos, apetites, impulsos, pulsões, necessidades, angústias, tensões, libidos, pathos, desejos ou vontades, são sentimentos que brotam não sabe bem de onde e nem por que, e que nos atingem em todos os momentos e situações, ao longo da vida. São traços intrínsecos de nosso ser, pois fazem parte de nossa essência – um homem sem afetos, como seria o etos de um estóico absoluto ou de um asceta vivendo no deserto, não constituir-se-ia em um homem na totalidade. Um espírito completamente livre dos apetites estaria no mesmo nível existencial de um seixo bruto ou de um ramo de acácia.

4-O maior dos afetos.

Dentre todos os afetos elencados pelas ciências da psiquê, o pai de todos é o medo. O medo é assim chamado porque além de possuir efetividade própria também gera muitos outros afetos secundariamente. Mitologicamente o medo simboliza um encontro visual com a cabeleira da Medusa, que nos petrifica. Considerando a perspectiva filosófica espinozana ou nietzscheana, o medo é uma sensação que nos causa uma tristeza, uma redução na vontade de viver, um revés no animus, uma queda na alegria, um desgaste na energia vital ou na potência de agir pela suposição da ocorrência de um evento que poderá nos causar um mal. Ele apresenta este traço indelével de nos corroer por antecipação: o medo nos afoga e domina antes da ocorrência efetiva de um evento concreto. Em outras palavras, ele age no campo de nossas abstrações, que aliás são intercorrências tipicamente humanas: antevemos um mal ou nossa mente criativa e elaborativa nos apresenta a uma premonição prejudicial e isto nos estressa.

Existem basicamente três tipos de medos. Dentre estas três categorias, duas podem se classificar como relativas a fatos bem definidos e concretos, que se efetivam no cotidiano das pessoas.

Em primeiro lugar podemos temer ações da natureza, como maremotos, terremotos, raios, trovões, desabamentos, meteoros caindo na Terra, a ação da gravidade que nos lança em abismos ou desfiladeiros montanhosos e ataques de animais.

Em segundo lugar somos susceptíveis de perder o sono imaginando sofrermos ações dos próprios homens. O meio social nos amedronta, pois nele somos passíveis de vivenciar acessos de violência física, agressões, atos de guerra, assédios de toda natureza, ataques morais (na forma de desmascaramentos, denuncias, imposturas e situações que nos apequenam perante os outros, tipo se sentir nú em um palco iluminado), golpes pecuniários, traições em troca de moedas de ouro ou muito menos, mentiras cotidianas, usurpações de glórias alheias ou esquivamentos de responsabilidades, etc . 

E em terceiro lugar situa-se o medo decorrente da noção e da certeza de que a vida é finita. A plena consciência – ou, como diriam os mais antigos, a sabedoria – da iminência da morte, associada ou não a sofrimentos morais e físicos, é uma exclusividade dos primatas mais evoluidos. Isso que torna os homens seres especiais. A decrepitude visível do corpo, para nós, é fonte ancestral de recorrentes dores da alma. Singulares e intangíveis inquietações tipicamente humanas acompanham esta noção temporal . Um bode ou uma romã certamente não se preocupam com o final de suas existências.

Estas três categorias de temores foram assim definidas em tempos imemoriais, por sábios do passado cujos nomes se perderam nas reviravoltas temporais. Mas esta noção ainda permanece viva e reluzente em alguns grupos específicos. Em certas sociedades iniciáticas estas três categorias de temores – da natureza, dos homens e da efemeridade da vida – são elaborados através da chamadas viagens simbólicas, quando o neófito enfrenta estes medos de forma estilizada e simbólica.

5-O Medo Maior

Agora que já comentamos de forma preliminar sobre os afetos em geral e sobre o medo em particular, podemos lançar a pergunta chave de nossa proposta reflexiva: qual seria o maior temor do ser humano?

A resposta a esta pergunta para a grande maioria das pessoas – com raras exceções – é muito simples, direta e óbvia: o nosso maior medo é o medo da morte. Uma vez que temos consciência de nossa limitação existencial, não temos escapatória. Somos assolados por um temor extremo, que é capaz de paralisar nossas atitudes e nossos pensamentos se não utilizarmos infindáveis mecanismos que burlam exatamente esta terrível certeza que se apresenta em um futuro breve ou longínquo. O ser humano é um ente mortal, finito, descartável, passageiro e efêmero. Tudo se extingue no último suspiro, quando atingimos o ponto de clivagem que, para Platão, separaria corpo e alma.

A noção de que somos seres temporais, que mais cedo ou mais tarde vamos retornar à “mãe-terra” , nos é certificada dia a dia pela ação corrosiva do tempo, que para os gregos estaria sob o comando de Chronos, o poderoso Titã. O caos de nossa passagem pelas areias da ampulheta titânica aflora em qualquer espelho ou em fotos antigas que reencontramos nas gavetas empoeiradas: nosso corpo não se cansa de relembrar que não somos deuses nem santos. O silêncio da morte, nossa insignificância perante o infinito e o eterno, inquietam as almas deste pequeno grupo de primatas surgidos na África, há poucos milhões de anos. Feliz ou infelizmente somos os únicos seres no mundo que tem esta exata e cruel noção.

5-As principais perspectivas filosóficas da Morte

5.1– A Morte na Escola Platônica

Platão tem duas frases que são referências: “Filosofar é aprender a morrer”, e “o verdadeiro filósofo já está morto”. São proposições no mínimo estranhas, para quem não está habituado às elucubrações das mentes mais argutas. A pergunta que surge – e perguntas como esta sempre afloram após frases de impacto dos grandes mestres – é: o que o ateniense quis dizer com estas palavras? Analisando inicialmente a primeira assertiva, lembremos que “aprender” é uma ação que demanda treinamentos e repetições de alguma atitude ou movimento. No caso do falecimento, então, como podemos aprender/treinar morrer se morremos apenas uma vez? Quanto à segunda colocação, essa história do filósofo ter que morrer para ser verdadeiro também parece a nós, relés primatas pós-modernos, uma conclusão meio exdrúxula: morto e sábio? Vamos examinar com calma o que o discípulo de Sócrates tinha em mente ao evocar tais complexas colocações.

Para o fundador da Academia, a morte seria apenas uma passagem, um breve desenlace do que ele chamava dicotomia corpo-alma. A alma seria a porção imortal, pura e justa de nosso ser. O corpo, por outro lado, seria a parte finita, impura e imperfeita. Nossa parte imaterial seria aprisionada pelo corpo no momento do nascimento. Ali passaria anos e anos confinada a esta estrutura física, que a escravizaria. Ao final, ou seja, no momento do passamento, a alma enfim se libertaria. Assim, o evento morte quase nada ou nada significaria para os platônicos e para seus sucessores. Isto porque, como afirmaria Heidegger no século XX, a morte não teria ontologia. A morte não tem um “ser”. Ela nada é. E como o que “não é” não representa algo que importa ao que “é”, não haveria razão alguma para nos preocuparmos. Dentre os seguidores desta modalidade de definir o final da vida, temos grandes figuras da história do pensamento, como os pais-fundadores do Cristianismo ( como São Paulo e São Jerônimo), Descartes, Hegel e Kant. Toda a chamada filosofia idealista, racionalista ou metafísica de uma forma ou outra não credita muito valor à morte como evento de grande impacto no “ser” do homem – isto porque uma perspectiva além da finitude natural estaria presente, seja no campo das ideias, seja no campo de alguma forma de transcendência de si ou da consciência para algum além-morte.

5.2- A Morte na Escola Aristotélica

Para Aristóteles não existiria o mundo das ideias de Platão. Tudo que há refere-se ao mundo da terra, da natureza, da realidade trazida por nossos sentidos. Este ponto de vista criou uma poderosa escola filosófica que rivalizava e ainda rivaliza com a filosofia idealista, que divide nossa persona em duas partes (corpo e alma) e que defende a existência de um componente imortal e sagrado no “ser” do homem. Este outro ramo da filosofia, também chamado de filosofia materialista ou empirista, aponta para a morte como sendo o fim da linha. A vida terminaria com a morte e ponto final. A alma, que pode até existir para certos autores, também seria material (composta de átomos, para os atomistas) e seria degradada com o último suspiro. Como dizia Epicuro, por esta visão de mundo a morte também nada significa – pois ela não faria parte da vida, seria um não-vida. Quando temos vida, a morte não estaria presente. Quando a morte está presente, nós não estamos. Portanto, qual a razão de se preocupar com isso? Esta era a célebre justificativa do fundador do “Jardim” para que tivessemos um total desapego ao drama da morte.

6-Sentido das Ordens Iniciáticas

Neste contexto de preocupação com os rumos e com a evolução de nossa vida, surgiram as chamadas sociedades iniciáticas ou esotéricas. Estas agregações de homens, reunidos em torno de um conjunto litúrgico, doutrinário e de princípios comuns, tem inúmeras formas de conduzir seus rituais estilizados. O objetivo principal que justifica a existência destes grupos é, indubitavelmente, fornecer subsídios teóricos e práticos que auxiliam e orientam os membros no sentido de exercerem um papel social pautado pela mais elevada ética. Em outras palavras, os integrantes devem se tornar homens melhores. E melhores tanto no sentido de serem capazes de elaborar reflexões e contemplações abstratas sobre temas diversos e que tem importância na realidade do mundo, mas acima disso, devem exercer efetivamente seu papel de obreiros com a “mão na massa”.

Para atingirem este objetivo teleológico, ou prático, de exercer um papel efetivo na construção de uma vida melhor para si e para todos, os iniciados deviam respeitar alguns principios elementares. Estes são estudados amiúde nos rituais estilizados, desenvolvidos desde o início dos tempos, nos cultos imemoriais elaborados a luz de tochas, em cavernas ou em clareiras em meio às savanas. Falava-se muito em virtude e vícios, em auto-conhecimento, em igualdade, em liberdade, em fraternidade, e em desprendimento “das paixões”. Estas seriam algumas das condutas ou dos conceitos que seriam indispensáveis, em termos de conhecimento e de aplicação, pelos legítimos membros. Em seguida vamos investigar como o fenômeno morte se relaciona exatamente com estas concepções.

7-A Morte e o Autoconhecimento

O processo de autoconhecimento – chamado de “Gnothi Sauton” pelos gregos e de “Nosce Ipsum” pelos romanos – refere-se ao percurso de descoberta do que se considera ser o verdadeiro “eu” de cada um. Esta instância, também intitulada como o sujeito, o indivíduo, o eu-mesmo ou a identidade, foi uma invenção da Modernidade, fase da história do pensamento que ganhou corpo, grosso modo, no século XVIII. Antes disso não havia por que se falar em singularidade. Na perspectiva metafísica do logos grego, por exemplo, o ser humano seria apenas uma peça na engrenagem arquitetural que regeria a totalidade – como uma pedra polida que se presta a uma construção, seríamoa tijolos bem (ou nem tanto) aparados e aptos a funcionar nas edificações erigidas e operantes no universo. Na perspectiva cristã metamorfoseamo-nos em ovelhas integradas a um rebanho regido pelas virtudes teleológicas e morais, rumo a um futuro igualitário e de paz interior na cidade de Deus – onde não haveria, obviamente, espaço para individualidades.

Esta possibilidade de realmente conseguirmos conhecer a nós mesmos, de termos uma ideia mais ou menos precisa de quem somos, do que desejamos, do que representamos em relação às outras pessoas, é objeto de especulação e de reflexões em muitas sociedades iniciáticas do passado e do presente. Porém, várias escolas filosóficas da contemporaneidade questionam se seríamos capazes de, por nós mesmos, obtermos uma impressão fidedigna de como se constitui nossa personalidade. Isso porque estaríamos submersos em um emaranhado tão complexo de estímulos, afetos, tensões, desejos, apetites e instintos que interfeririam nesta captação & assimilação do eu-profundo – seria completamente impossível a uma pessoa ter uma noção de seu ser mais íntimo. Esta manobra equivaleria a tentar enxergar a paisagem através de um vidro bem embaçado por manchas e vapores, que deturpariam nossa visão para os planos mais exteriores. Como exemplo de destaque desta linha de pensamento, no meio acadêmico atual, temos o Prof Daniel Dennet, do MIT (EUA). Sua heterofenomenologia afirma que somente um observador externo tem condições de elaborar uma análise legítima deste fenômeno, que no caso seria nossa própria consciência. Se ele estiver correto, não temos a mínima possibilidade de conhecer a nós mesmo. Este saber estaria restrito a terceiras pessoas que elaborariam um juízo de nós através de nossas manifestações ou de nossas linguagens cotidianas.

Entretanto, quando estivermos próximos da morte ocorre um fato inédito e inexorável: nossos afetos, paixões, instintos e outras “vendas nos olhos” vão se deteriorando. Como estamos defronte ao abismo, nos despimos de todos os sentimentos que enebriam nossa visão da realidade, do mundo e de nós mesmos. Em outras palavras, momentos antes da morte o vidro que estava embaçado, e que turvava nossa visão profunda de nosso ego, agora mostra-se limpo e puro. Seria possível, assim, elaborarmos a experiência do autoconhecimento apenas nesta condição, quando estivermos prestes a morrer. A tese da heterofenomenologia de Dennet deixaria de funcionar.

Considerando que a morte nos apresenta a única possibilidade de acesso a nossa essência, ao nosso imago mais profundo e revelador, pois nada mais nos afetará, exceto a expectativa da eminente realização da finitude, ela é a chave justa e perfeita para a experiência do autoconhecimento.

8-A morte e as virtudes

Aristóteles dizia que as virtudes são hábitos que as pessoas devem cultivar se buscam o bem. Seriam as atitudes que realizamos no sentido de alcançar a vida ideal, justa, perfeita e pautada pela ética. A dúvida que surge, nesta colocação, é como definir com clareza o que seria uma vida boa. Qual seria o modelo que devemos utilizar como exemplo a ser seguido? Ou mais resumidamente: o que seria o bem?

Os gregos acreditavam que o mundo era perfeito. Tudo que existe teria uma finalidade, um sentido e uma missão a cumprir. Isso ocorreria para todos os entes e fenômenos da natureza. Como a chuva, os bodes e as acácias, cada elemento teria sua razão de existir e comporia o universo regido por uma lógica, que eles chamavam de logos, operando em um projeto arquitetônico harmônico. Uma peça que não se encaixasse no desenho da prancheta seria uma hybris, equivalente a um simulacro ou uma aberração. Dentre todas as criações existentes, haveria apenas uma que teria o potencial de viver fora de seu objetivo primordial: o homem. O ser humano teria condições de navegar contra a sua natureza. Isto ocorreria quando a pessoa não conhece seus verdadeiros talentos, ou quando apesar de descobrí-los não os exerce na plenitude. Para o ethos grego, portanto, a vida boa é aquela vivida de acordo com as aptidões naturais que o logos concedeu a cada cidadão. Esta seria a forma virtuosa de viver. O oposto seriam os vícios. Como exemplos desta condição não-ideal, imagine Mozart como um comerciante, Van Gogh como um pastor ou Pelé como um funcionário público. Seriam casos exemplares de hybris, ou de virtudes degeneradas. Para os gregos somente os talentosos e que exercem suas aptidões na plenitude poderiam dirigir com excelência os destinos da polis. Assim, o ideal da vida grega ou a prática do bem se refletiria na boa condução dos negócios das cidades, condição esta exclusiva aos virtuosos.

A virtude para os cristãos teria outro significado. Agora a preocupação com a possibilidade de se conquistar uma vida boa e digna se referia a ter acesso à cidade de Deus. Os bons cristãos devem exercer alguns hábitos e práticas formuladas por Deus que ficaram conhecidas como virtudes teleológicas: fé, esperança e amor (caridade). Por este prisma os talentos individuais nada representam em termos de se alcançar o ideal de vida. O que importa é a crença em Deus, a esperança de perspectivas melhores no futuro e o bem cuidar do próximo.

Em meados do século XVIII uma nova figura surgia no esplendor das luzes pós Renascença: o homem moderno. A razão esclarecida passava a ser o timoneiro dos pensamentos, dos atos e das omissões dos doutos iluminados. Tudo que existia até então teria que passar pelo crivo da capacidade questionadora das mentes livres e conscientes. Este novo homem racional se reinventou enquanto “ente-no-mundo”. Uma vez que passara a questionar todo e qualquer pensamento, este pensador exercia uma autonomia. Criou-se, assim, o sujeito, o indivíduo, o “”eu-senhor-de-si ou o ego condutor dos próprios destinos. Com imenso poder de devastação sobre as concepções anteriores do que seria uma postura virtuosa, a razão e o sujeito moderno ditavam quem tinha ou quem não tinha o direito de gozar uma vida reta. A virtude grega e cristã perdiam fôlego – o modelo agora era a vida calcada em uma espécie de virtude racional, exercida através do mote “Cogito Ergo Sum” cartesiano. O novo ethos representava uma libertação de todas as formas de tutela ou de concepção metafísica: o homem como sujeito seria o suficiente para gerar todo sentido e todos os significados para a vida plena. O homem, como figura subjetiva, não dependia mais de nenhuma instância superior a si para explicar ou justificar o universo, enquanto projeto arquitetônico ou enquanto obra divina. Tudo se resumiria ao indivíduo, completamente livre e por isso mesmo igual a todos que existem – os ideais de liberdade e de igualdade surgem com o homem moderno.

Já na pós-modernidade a definição de virtude se altera. Com a derrocada dos valores modernos, devido à crise moral da ciência e da razão enquanto vertentes moduladoras da boa vida, algo novo aparece no horizonte dos caminhos do homem. Com a explosão dos meios de comunicação de massa, somado ao incremento na industrialização e na produção de bens de consumo (a revolução industrial começou no século XVIII mas seu apogeu ocorreu logo depois da II grande guerra), e tendo ainda a recente intensificação brutal da globalização de informações e de pessoas pelas conexões da internet, ser virtuoso na contemporaneidade equivale a ser um bom consumidor dos produtos – tangiveis e intangíveis – que o mercado oferece ininterruptamente. Melhor explicando: o caminho da boa vida é o caminho do consumo. Esta é uma consequência lógica do sistema capitalista. E atrelado a este consumismo vem todo um estilo de vida de alta rotatividade, de relações fluidas – ou líquidas, como diz Bauman – de hedonismos fugazes e de aparentar uma felicidade abstrata e plastificada.

Independentemente da forma como interpretamos o que seriam as virtudes ideais que todo cidadão “de bem” deve respeitar e praticar, trata-se de um conjunto de valores que determinam um condicionamento de comportamentos ou um adestramento das aptidões individuais que ocorre com raridade entre os homens. Mais que isso, são metas ou objetivos transcendentais que a maioria das pessoas não vão conseguir atingir, por questões de limitações pessoais ou morais. Em outras palavras: todos querem ser e se dizem muitas vezes virtuosos, mas na realidade isto não ocorre. O ser humano, com raras exceções, exercem em sua vida privada e pública apenas uma interpretação caricata e bufona dos papéis virtuosos elencados ao longo das eras. Esta máscara “de bonzinho” que é tão fartamente utilizada é apelidada de “vício”. O vício é a caricatura, o fake, o simulacro da virtude. A sociedade nos diz “seja virtuoso”, mas se não for possível que seja pelo menos aparentemente virtuoso.

Na morte ou em sua iminência esta preocupação com a fantasia virtuosa desaparece. Neste momento o verdadeiro homem-bom emerge com força e vigor, porque os que apenas interpretavam o drama/novela de simular ser um exemplo pessoal vão perder seus escudos caricatos. A morte revela exatamente o caráter de cada um, seja ele virtuoso, seja ele um aprendiz do ideal de vida.

9- A morte e a Liberdade-Igualdade-Fraternidade

Nos últimos momentos da vida as máscaras dos virtuosos tendem a ruir mas a tragédia vai mais longe em termos de sentidos e significados. Além de afetar a virtude os últimos suspiros interferem também na operacionalidade do desempenho público do ente no mundo. Vamos detalhar melhor este ponto.

Ao longo de toda a vida a maioria das pessoas segue um roteiro de atos e palavras que foi inspirado por verdades e assertivas que lhe são atribuídas por terceiros ou por si mesmos. As pessoas vão assumindo papéis, tendo posturas, discursos e atuações conforme sua “personagem” evolui no teatro do cotidiano. Em outras palavras: muito do que expressamos no dia a dia em termos das linguagens diversas que emanamos são fruto não de uma identidade própria (como gostavam de afirmar os modernos, com seu projeto de subjetividade autônoma) mas seriam manifestações práticas de uma construção criativa psicológica denominada de consciência, de mente, de alma ou eu, que não tem qualquer identidade original singular. Isto quer dizer que todos ou quase todos atuam a vida inteira como se estivessem em um palco teatral onde reproduzem atitudes que foram apreendidas em experiências anteriores e que incorporam ao seu passo-a-passo da vida em sociedade. Nesta perspectiva, a escravidão é uma realidade. Somos escravos dos papéis que escolhemos interpretar e que nos abafam, nos encobrem ou que até mesmo colocam vendas em nossos olhos no sentido de não deixar enxergar o que exatamente existe em termos de identidade.

Atentando ao exemplo da virtude pós-moderna, esta condição fica mais clara: tudo que falamos, consumimos, desejamos, idealizamos, detestamos, adoramos ou que pensamos foi estabelecido por outras pessoas mais criativas e poderosas do que nós. Muitos gurus impõe a nós suas visões de mundo, suas ideologias e seu poder sem que ninguém – ou quase ninguém – tenha consciência disso. Richard Dawkins e Daniel Dennet chamaram estes componentes de memes. Nos minutos que antecedem à morte existe a possibilidade de nos libertarmos destas máscaras e destes papéis que foram se sobrepondo ao longo da curta vida. Esta é a verdadeira liberdade, conquistada poucos instantes antes do final de tudo. Com a liberdade, também nos encontramos com o nosso eu verdadeiro, e isto representa a igualdade – entre mim enquanto personagem de minha própria vida e como eu-mesmo. E assim libertos podemos compreender que tudo que construímos em torno de nossa personalidade foi feito apenas para nos proteger dos traumas e estresses da convivência social – um náufrago em uma ilha não precisa destes artifícios para tocar seu cotidiano. Como estamos livres desta preocupação a legítima fraternidade pode imperar, mesmo que por breves instantes.

10-A morte e as paixões

O homem é um ser que vive de suas paixões. Os sentimentos permeiam todos os pensamentos, atos, palavras e omissões das pessoas. Estes estímulos são chamados por muitos nomes, como afetos, paixões, instintos, libidos, apetites ou desejos, dentre inúmeros outros apelidos. Schopenhauer disse que nossa vida oscila entre o desejo pelo aquilo que nos falta e o tédio, que surge após conquistarmos o objeto desejado e enquanto outro desejo não se manifesta. Somos seres desejantes. O tempo todo. Mesmo dormindo, através de nossos sonhos a alma humana desejante continua atuando. Lacan afirmava que o maior desejo da alma é ser desejada. Platão dizia que o maior desejo do homem é ser desejado intelectualmente. Os animais, por seu lado, tem desejos ditados unicamente pela força da natureza, mas nós vamos muito além disso. Desejamos objetos intangíveis como amor, respeito, justiça, fraternidade e reconhecimento. Apesar de muitos apregoarem que devemos nos “libertar das paixões”, pela moderna psicologia isto é absolutamente impossível. Estar vivo é estar desejando alguma coisa. Assim, fica claro que na iminência da morte, quando a vida escoa gota a gota pelos dedos da foice terrível, nossos desejos também sucumbem. Perdemos os desejos, as paixões enfraquecem. Nesta condição moribunda, e somente nesta situação, existe a possibilidade de nos libertarmos dos grilhões de nossos sentimentos mais enraizados. Morrer é dominar, pela primeira e última vez, nossa alma livre, sem tédio e sem a sensação de que algo falta. A morte preenche todas as lacunas. Nada mais há a desejar.

Conclusão

Percebemos nitidamente que muitas das metas e objetivos apregoados pelas diversas sociedade iniciáticas são passíveis de positividade (de ocorrerem na prática) apenas no momento da morte ou em suas instâncias preliminares. A morte é a experiência máxima, a catarse, o êxtase, o ápice da vida. Por mais sábio que seja um homem sempre lhe faltará a experiência suprema do mundo, que é a sua própria morte. Tudo ali, no momento mais fúnebre, é elaborado em um plano sensitivo singular para quem vivencia este lapso existencial pela primeira e derradeira vez. Mas, aqui surge um paradoxo pedagógico : como podemos obter os conhecimentos e saberes emanados desta situação se só vamos vivenciá-la em um futuro distante – oxalá isso ocorra com todos! E mesmo quando isto ocorrer logo em seguida nossa vida se extinguirá como a chama de uma vela, e esta finalização impedirá, obviamente, que os ganhos obtidos possam de alguma forma contribuir para a concretização de uma vida mais justa e harmônica?

A solução para este paradoxo foi resolvida por grande parte das doutrinas esotéricas pela dramatização simbólica da morte em rituais estilizados. O neófito enfrenta uma experiência de morte teatralizada, elaborada de acordo com uma liturgia repleta de metáforas que o remeterão, quando bem realizadas e se o candidato realmente tiver o poder de transcender a estes estímulos, aos momentos de sua passagem final nesta terra. E assim ele poderá vivenciar todas as fases da quase-morte tendo acesso aos estímulos psíquicos que levarão às diversas libertações, como mencionadas nos itens anteriores, mas com a imensa vantagem de após alguns minutos poder vislumbrar novamente a luz da vida. Voltando ao mundo da vida, ao mundo comum, o neófito apresenta-se agora revigorado, transformado e possuidor de uma sabedoria iniciática que facilitará seus futuros passos pelos labirintos da vida de maneira mais justa e perfeita.





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