Aprendendo a ser líder


LIDERANÇA
Dee Hock
Extraído do livro Nascimento da Era Caórdica.
Editora Cultrix

Um líder pressupõe um seguidor. Um seguidor pressupõe uma escolha. Quem é coagido a seguir os propósitos, os objetivos e as preferências do outro não é um seguidor no verdadeiro sentido da palavra, mas um objeto de manipulação. O fato de as duas partes aceitarem o domínio e a coerção também não altera substancialmente o relacionamento. O ato de liderar e o ato de seguir pressupõem que líder e seguidor tenham liberdade permanente para romper a relação e seguir outro caminho. Um verdadeiro líder não pode ser obrigado a liderar. Um verdadeiro seguidor não pode ser obrigado a seguir. Um verdadeiro seguidor não pode ser obrigado a seguir. No momento em que isso acontece, não são mais líder e seguidor. Os termos líder e seguidor envolvem liberdade e pensamento independente de ambas as partes. Se o comportamento de um deles é forçado, seja por necessidade econômica ou por arranjo contratual, a relação passa a ser de superior/subordinado, administração/empregado, patrão/criado ou dono/escravo. Todas essas relações são materialmente diferentes da relação líder/seguidor.



O comportamento induzido é a essência da relação líder–seguidor. O comportamento forçado é a essência de todas as outras. Onde o comportamento é forçado há tirania, mesmo que benigna. Onde o comportamento é induzido, há liderança, mesmo que poderosa. Liderança não implica conduta construtiva, ética, aberta. É inteiramente possível induzir comportamento destrutivo, maligno, tortuoso, e fazêlo por meios corruptos. No entanto, um propósito claro e significativo, e fortes princípios éticos que venham de todos os participantes devem ser a essência de qualquer relação e de qualquer instituição.

Há uma pergunta instigante: como garantir que os que lideram sejam construtivos, éticos, abertos e honestos? A resposta é: basta seguir quem vai se comportar dessa maneira. Isso remete ao fato de que são as pessoas que escolhem – no sentido individual e coletivo – como serão lideradas. Na verdade, os seguidores conduzem a escolha do lugar para onde serão conduzidos. Para onde é conduzida a comunidade? Isso depende das crenças e valores conscientes que as pessoas de que ela é composta compartilham.

Os verdadeiros líderes são aqueles que resumem o sentimento geral de comunidade; que simbolizam, legitimam e fortalecem o comportamento de acordo com esse sentimento; que permitem que os valores conscientes compartilhados pela comunidade surjam, cresçam e sejam transmitidos de geração em geração; que permitem que aconteça o que está querendo acontecer. O comportamento do verdadeiro líder é induzido pelo comportamento de cada pessoa que escolhe como vai ser liderada.

É importante lembrar que a verdadeira liderança e o verdadeiro comportamento induzido podem ser construtivos ou destrutivos, mas que têm uma tendência inerente ao bem, enquanto a tirania e o comportamento forçado têm uma tendência inerente ao mal.

Ao longo dos anos, venho tendo longas discussões informais com centenas de grupos em todos os níveis de diversas organizações, sobre assuntos do interesse deles. Essas conversas geralmente gravitam para a administração: há quem a aspire, quem esteja insatisfeito com ela ou confuso a seu respeito. Para evitar ambigüidade, peço que cada um descreva a maior responsabilidade de qualquer administrador. As respostas, incrivelmente diversas, têm sempre uma coisa em comum: enxergam de cima para baixo. A administração é sempre relacionada ao exercício da autoridade – selecionar empregados, motivá-los, treiná- los, avaliá-los, organizá-los, dirigi-los, controlá-los. Essa noção é equivocada.

A primeira e suprema responsabilidade de quem pretende administrar é administrar a si mesmo: integridade, caráter, ética, conhecimento, sabedoria, temperamento, palavras e atos. É uma tarefa complexa, interminável, incrivelmente difícil, muitas vezes evitada. A administração do eu é algo a que dedicamos pouco tempo e raramente dominamos, pois é muito mais difícil do que determinar e controlar o comportamento dos outros. Sem administração do eu, ninguém está preparado para ter autoridade, mesmo que a tenha. Quanto maior autoridade tiver, mais perigoso vai se tornar. É a administração do eu que merece metade do nosso tempo e o melhor da nossa capacidade, para que não os escapem os elementos éticos, morais e espirituais de tal empreitada.

Convidadas a identificar a segunda responsabilidade de um administrador, as pessoas produzem novamente uma incrível variedade de opiniões, que também enxergam de cima para baixo. Outro erro. A segunda responsabilidade de um administrador é administrar os que têm autoridade sobre nós: patrões, supervisores, diretores ad infinitum. Num mundo organizado, há sempre pessoas para nos deixar guiar pela convicção, para exercer o julgamento, para usar a capacidade criativa, para atingir resultados construtivos e para criar condições em que os outros possam fazer o mesmo. Administrar os superiores é essencial. Não é exagero devotar um quarto de nosso tempo e capacidade a essa empreitada.

Interrogados sobre a terceira responsabilidade, as pessoas ficam incertas. Mesmo assim seus pensamentos continuam nos subordinados. Novo erro. A terceira responsabilidade é administrar seus iguais – aqueles sobre os quais não temos autoridade e que não têm autoridade sobre nós – associados, concorrentes, fornecedores, clientes – o nosso meio, poderíamos dizer. Sem seu apoio, respeito e confiança, pouco ou nada pode ser realizado. Os iguais podem tornar nossa vida um céu ou um inferno. Não é sensato dedicar pelo menos um quinto de nosso tempo, energia e capacidade à administração dos iguais?

Quando chega a quarta responsabilidade, as pessoas acham difícil encontrar uma resposta, pois agora evitam olhar de cima para baixo. Seja como for, tirando o eu, os superiores, os iguais, resta muito pouco. A quarta responsabilidade é administrar aqueles sobre os quais temos autoridade. Mas, costuma ser a resposta, se o tempo inteiro é dedicado à administração do eu, dos superiores e dos iguais, não haverá tempo para administrar os subordinados. Exatamente! Basta selecionar pessoas decentes, apresentá-las ao conceito, induzi-las a praticá-lo e desfrutar o processo. Se aqueles sobre quem temos autoridade administram bem a si mesmos, nos administram, administram seus iguais e repetem o processo com aqueles que empregam, só resta lhes assegurar o reconhecimento e as recompensas que recebem. E deixá-los em paz.

Administração não é fazer dos outros pessoas melhores. É fazer uma pessoa melhor de si mesmo. Remuneração, poder e cargos não têm nada a ver com isso.

Surge então a pergunta óbvia. Como administrar os superiores – patrões, sócios, clientes? A resposta é igualmente óbvia. Não dá. Mas dá para entendê-los? Dá para persuadi-los? Dá para motivá-los? Dá para inquietá-los, influenciá-los, perdoá-los? Dá para lhes dar um exemplo? A palavra certa vai acabar surgindo. Dá para conduzi-los, liderá-los?

É claro que dá, contanto que você tenha liderado corretamente a si mesmo. Não há regras nem regulamentos tão rigorosos, organizações tão hierárquicas, patrões tão desaforados que nos impeçam de nos comportar dessa maneira. Não há pessoa ou organização que possa impedir esse uso da nossa energia e da nossa capacidade. Podem tornar isso mais difícil, mas não podem impedilo. O poder real é nosso, não delas.

Há uma imensa dificuldade nesse modo de ver as coisas. O fracasso é constante e certo. Quando a nossa própria conduta, inteligência e esforço são deficientes, como às vezes acontece, esse é um fracasso de primeira grandeza. Quando não conseguimos conquistar a confiança, a anuência e o apoio dos superiores, esse é um fracasso de segunda grandeza. Quando somos subvertidos pelos iguais, dominados pelos concorrentes ou paralisados por regras insensatas, esse é um fracasso de terceira grandeza. Se aqueles sobre quem temos autoridade não são induzidos a compreender, aceitar e praticar o conceito, esse é um fracasso de quarta grandeza. É em nós mesmos que devemos procurar os erros.

No início, esse parece um fardo impossível de carregar. Depois de um pouco de reflexão, não parece mais tão terrível. Nem chega a ser um fardo. O sucesso incentiva, aumenta a confiança e é agradável, mas ensina uma lição insidiosa: eleva demais a opinião que temos de nós mesmos.

É do fracasso que geralmente vem o desenvolvimento e o mérito, contanto que sejamos capazes de reconhecê-lo, de admiti-lo, de aprender com ele, de nos elevar acima dele e de tentar de novo. Não há motivo para desanimar com as falhas. A verdadeira liderança pressupõe um padrão muito acima da perfectibilidade humana e é assim que deve ser, pois a alegria e a satisfação estão na busca de um objetivo, não em sua realização. O que importa é continuar subindo na escala.

É fácil testar esse conceito. Reflita um momento sobre alguma atividade em grupo em que você é um observador e não um participante. Se seu interesse é o balé, você vai sem dúvida lembrar de momentos em que o corpo de baile pareceu elevar-se acima da capacidade individual de cada bailarino e atingir um desempenho mágico, aparentemente fácil. Se o seu interesse é o esporte, o mesmo fenômeno se manifesta. Equipes cujo desempenho transcende a capacidade dos indivíduos. O mesmo fenômeno pode ser observado na orquestra sinfônica, no teatro, em qualquer atividade em grupo, inclusive nos negócios e no governo.

Todo coreógrafo, maestro ou técnico, assim como todo presidente de empresa, já tentou destilar a essência desses desempenhos. Outros, em número incontável, tentaram explicar e reduzir a um processo mecanicista, mensuravelmente controlado, aquilo que provoca o fenômeno. Isso nunca foi feito e nunca será.

É facilmente observado, universalmente admirado e ocasionalmente experimentado. Acontece, mas não dá para fazer de propósito. É raro durar muito tempo, mas pode se repetir. Surge das relações e da interação daqueles que o compõem. Parece que algumas organizações conseguem repeti-lo, assim como parece que alguns líderes conseguem fazer com que ele aconteça com regularidade, mesmo em diferentes organizações.

É mais exato dizer que há líderes capazes de fazer com que a organização atinja um desempenho superlativo, pois ninguém pode fazer com que esse fenômeno ocorra. Os líderes podem apenas reconhecer e modificar as condições que o impedem; podem perceber e articular um senso de comunidade, uma visão do futuro, um corpo de princípios aos quais as pessoas sejam apaixonadamente leais. E podem então incentivá-las e capacitá-las, para que descubram e revelem a extraordinária capacidade que está presa em todos nós, lutando para sair.

Sem dúvida, o mais abundante, o mais barato, o menos utilizado e o mais abusado recurso do mundo é a engenhosidade humana. Na origem desse abuso estão os conceitos de organizações mecanicistas e dominadoras da Era Industrial e as práticas de administração que produzem.

No sentido mais profundo, a diferença entre líderes e seguidores é inexpressiva. A cada momento da vida, estamos ao mesmo tempo liderando e seguindo. Não há um momento em que o nosso conhecimento, julgamento e sabedoria tenham maior utilidade e aplicação do que os de outra pessoa – e outro momento em que o conhecimento, julgamento e sabedoria de outra pessoa tenham maior utilidade e aplicação do que os nossos. A qualquer momento essa "outra pessoa" pode ser superior, seja um subordinado ou um igual.

Todos nós somos líderes natos. Quem pode negar que começou a liderar pais, irmãos e companheiros o momento em que nasceu? Observe um bebê chorar e os pais pularem. Nascemos líderes – pelo menos até sermos obrigados a ir para a escola e nos ensinarem a administrar e a sermos administrados.

Pessoas não são "coisas" a serem manipuladas, rotuladas, enquadradas, compradas e vendidas. Acima de tudo, não são "recursos humanos". São seres inteiros que contêm a totalidade do universo em evolução, ilimitadas até começarmos a limitá-las. Devemos examinar o conceito de liderar e seguir com novos olhos. Devemos examinar o conceito de superior e subordinado com crescente ceticismo. Devemos examinar o conceito de administração e trabalho à luz de novas crenças. E devemos examinar a natureza das organizações que exigem essas distinções com uma consciência totalmente diferente.

É de verdadeira liderança, liderança de todos, liderança dentro, em cima, em volta e embaixo que este mundo tanto precisa, mas infelizmente é uma administração dominadora o que consegue.

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